Os artigos 2º da LC n. 130/2009 conforme o PLP n. 27/2020

Marianna Ferraz Teixeira

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As cooperativas são constituídas com o objetivo de prestar serviços aos seus associados, conforme preceitua o caput do art. 4º da Lei das Cooperativas (Lei n. 5.764/71). No caso das cooperativas de crédito, sua finalidade encontra previsão no art. 2º da Lei Complementar n. 130/2009, que dispõe que “as cooperativas de crédito destinam-se, precipuamente, a prover, por meio da mutualidade, a prestação de serviços financeiros a seus associados, sendo-lhes assegurado o acesso aos instrumentos do mercado financeiro”.

Quando do seu surgimento, as cooperativas de crédito possuíam serviços restritos à concessão creditícia. No entanto, com o passar dos anos e o crescimento desse tipo societário dentro do mercado financeiro, o Conselho Monetário Nacional – CMN – autorizou-as a ofertar novos serviços.

A fim de manter suas características primordiais, a captação de recursos e a concessão de créditos e garantias são restritas aos associados, não obstante sejam permitidas algumas exceções e é neste ponto que o art. 2º, §1º poderá vir a ser modificado pelo Projeto de Lei Complementar n. 27/2020.

As hipóteses anteriormente previstas no §1º (captação de recursos de Municípios, seus órgãos e entidades e das empresas por ele controladas, por cooperativa de crédito; as operações realizadas com outras instituições financeiras e os recursos obtidos de pessoas jurídicas, em caráter eventual, a taxas favorecidas ou isentos de remuneração) foram subdivididas nos incisos I, II e III, respectivamente, sofrendo o acréscimo de três novas proposições, quais sejam: 

(a) o inciso IV propõe como exceção as operações de assistência e de suporte financeiro realizadas com fundos garantidores; 

(b) o inciso V, por sua vez, excetua as operações realizadas com cooperativas centrais de crédito ou confederações de crédito, ou com outros fundos garantidores por ela constituídos e às quais estejam filiadas; 

(c) por fim, o inciso VI excepciona os repasses de instituições oficiais ou de fundos públicos.

Os acréscimos são importantes para demonstrar a solidez e a confiabilidade das cooperativas de crédito perante o Sistema Financeiro Nacional, já que a operação com fundos garantidores estará prevista em lei, permitindo que se esvaia qualquer dúvida e/ou preconceito ainda existente com relação a esse tipo societário. 

As duas últimas modificações previstas no art. 2º referem-se à inclusão da extensão da prestação de outros serviços de natureza financeira e afins (por exemplo, pagamento de boletos bancários) também a entidades integrantes do poder público no §2º e a previsão de que a operação prevista no inciso I do §1º somente poderá ser realizada com Municípios, seus órgãos ou entidades e empresas por eles controladas onde a cooperativa possuir agência ou posto de atendimento, conforme letra do §9º. 

Referidas medidas visam assegurar a importância desse tipo de instituição para o desenvolvimento do município, posto que as cooperativas possuem entre seus princípios basilares o compromisso com a comunidade, ao trabalhar para o desenvolvimento sustentável do local ao qual fazem parte, ademais de em muitos desses locais ser a única instituição financeira existente.

O projeto de lei acrescenta, ainda, os artigos 2º-A e 2º-B à LC n. 130/2009. O primeiro deles trata sobre a área de atuação das cooperativas singulares de crédito, definindo como área de ação aquela constituída pelos municípios onde haja instalação da sede e demais dependências, conforme o estatuto social e como área de admissão de associados aquela delimitada pelas possibilidades de reunião, controle, realização de operações e prestação de serviços.

Já o artigo 2º-B dispõe que serão admitidas operações de crédito com compartilhamentos de recursos e de riscos por um conjunto de cooperativas de crédito integrantes de um mesmo sistema cooperativo, cabendo ao CMN o estabelecimento das condições a serem observadas nessas contratações.

Sob a ótica jurídica, esse acréscimo é temerário e pode gerar prejuízos para as cooperativas singulares, uma vez que permite brecha para que o Poder Judiciário passe a aplicar, com base nessa previsão legal, o conceito de grupo econômico às cooperativas que partilhem recursos e riscos.

Sabe-se que grupo econômico, segundo o art. 265 da Lei das Sociedades Anônimas (Lei n. 6.404/76), abarca a sociedade controladora e suas controladas que constituem grupo de sociedades, mediante convenção pela qual se obriguem a combinar recursos ou esforços para a realização dos respectivos objetos, ou a participar de atividades ou empreendimentos comuns, estipulando, assim, a estrutura administrativa do grupo e a coordenação ou subordinação dos administradores das sociedades filiadas. 

Por sua vez, o art. 2º, §2º, da CLT dispõe que para que reste configurado grupo econômico, é necessário que uma ou mais empresas, ainda que tenham, cada uma delas, personalidade jurídica própria, estejam sob a direção, controle ou administração da outra, constituindo grupo industrial, comercial ou de qualquer outra atividade econômica, bastando a existência de relação de coordenação entre as empresas, ainda que sem posição de predominância ou hierarquia.

Ainda que a legislação internacional determine a prevalência da aplicação do Direito Cooperativo sobre todas as demais normas, como, por exemplo, a Lei Marco para as cooperativas da América Latina e a Recomendação n. 193 da Organização Internacional do Trabalho, a ausência de ensino desse ramo do direito e o pouco interesse dos operadores do direito em conhecê-lo afetam a aplicação das normas e da doutrina que rege as cooperativas, uma vez que a despeito das particularidades existentes, sofre com a aplicação de normas gerais. 

Sendo assim, tendo em vista que a jurisprudência atual encontra-se dividida e muitas decisões são proferidas no sentido de caracterizar os sistemas de cooperativismo de crédito como marcas, reconhecendo, equivocadamente, a existência de grupo econômico entre as cooperativas singulares pertencentes a um mesmo sistema, sem observar suas regras de associação e áreas de atuação, a nova proposta viria a confirmar esse posicionamento, uma vez que agrega mais um elemento para a aplicação da teoria mencionada.

Com isso, qualquer cooperativa singular poderá ser responsabilizada por atos cometidos por quaisquer das outras cooperativas pertencentes ao mesmo sistema, gerando prejuízos financeiros e custos processuais que não estariam previstos em seu relatório de risco anual e que, de fato, não são de sua responsabilidade.

Se analisada a perspectiva operacional, tampouco vislumbra-se um aspecto positivo, já que a previsão do art. 2º-B de compartilhamento de recursos e de riscos assemelha-se ao empréstimo sindicalizado já realizado pelos bancos.

O empréstimo sindicalizado é um tipo de financiamento fornecido por um consórcio de pelo menos duas instituições financeiras em que o conjunto comum de termos apresentado ao devedor será regido por uma mesma documentação, ou seja, essas instituições compartilharão, por exemplo, a mesma documentação e garantias, ofertando, em troca, recursos que sustentem exigências de financiamento significativamente maiores, repartindo proporcionalmente os riscos.

Se esse risco for excessivo e gerar um prejuízo, conforme previsto na legislação cooperativista, a perda será rateada entre os associados e não entre os membros do Conselho de Administração, que são os efetivos responsáveis pela autorização da contratação nessa modalidade.

Além disso, se a norma diz que a cooperativa somente pode ofertar seus serviços a quem é seu associado, ao contrário das demais instituições financeiras, que o disponibilizam ao mercado, como nesse consórcio uma cooperativa ao qual o cooperado não é associado poderá participar do negócio? Será necessário que o cooperado seja membro de ambas as cooperativas envolvidas?

As cooperativas disponibilizam produtos para um grupo restrito, razão pela qual não estão englobados no mercado de consumo, já que não são ofertados de maneira indiscriminada em um determinado local.

Diante disso, a previsão do art. 2º-B fere o caráter da pessoalidade dentro dessa sociedade de pessoas, já que permite operação baseada naquilo que se executa no mercado, sem observar as características e, sobretudo os princípios que regem o tipo societário, faria, assim, com que as cooperativas singulares percam sua identidade e se aproximem mais às demais instituições financeiras.

Por essa razão, as proposições de alteração, ainda que busquem a modernização do cooperativismo de crédito, devem ser cuidadosamente pensadas para manter a identidade cooperativa e evitar a companização do cooperativismo brasileiro.

Veja outros post da série PLP n. 27/2020 aqui e aqui.

sobre o autor

Marianna Ferraz Teixeira

Mestre em em Gestão e Regime Jurídico-Empresarial da Economia Social pelo Instituto Superior de Contabilidade e Administração do Porto/Instituto Politécnico do Porto (ISCAP/IPP). MBA em Gestão de Cooperativas de Crédito pela Universidade de São Paulo (USP). Especialista em Direito e Prática Processual nos Tribunais pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB), mesma instituição de ensino em que se graduou em Direito.

Realizou cursos em Governance in Co-operatives pelo Canadian Centre for the Study of Co-operatives, em International Business Transactions pela Universidad Austral e em Tributação no Mercado Financeiro pela CNF e B3 Educação.

É membro do Instituto Brasileiro de Estudos em Cooperativismo (IBECOOP), da Comunidade Internacional de Advogados Cooperativistas (IUS Cooperativum) e do Grupo de Estudos em Direito e Regulação Financeira da Universidade de Brasília (GEFIN/UnB).

Idiomas: português, espanhol, inglês e francês.

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