O cooperativismo e o ODS n. 5 da Agenda 2030 da ONU

Marianna Ferraz Teixeira

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O cooperativismo foi criado com base em valores que estimulam o desenvolvimento pessoal por intermédio do auxílio entre pessoas, sendo eles a ajuda mútua, a responsabilidade, a democracia, a igualdade, a equidade e a solidariedade, além dos valores éticos da honestidade, da transparência, da responsabilidade social e da preocupação pelos demais, que devem estar presentes no desenvolvimento das atividades difundidas pelo cooperativismo.

Esses valores deverão ser observados e desenvolvidos mediante a aplicação dos sete princípios definidos pela Aliança Cooperativa Internacional – ACI.

Embora a Recomendação n. 193 da Organização Internacional do Trabalho e a Lei Marco para as Cooperativas da América Latina prevejam a aplicação de regras específicas ao cooperativismo em observância aos princípios definidos pela ACI, não os vemos transcritos nem na Constituição, nem na Lei Geral das Cooperativas, tampouco temos a determinação de sua obediência, como ocorre na Constituição Portuguesa.

Cabe destacar, no entanto, que a Constituição Federal de 1988 prevê o apoio e o estímulo a esse tipo societário, permitindo sua criação independentemente de autorização, vedada a interferência do poder estatal em seu funcionamento.

Isso ocorre devido ao interesse do Estado em promover a ordem econômica nacional, assegurando, além da livre iniciativa e da valorização do trabalho humano, a existência digna de seus cidadãos, conforme os ditames da justiça social e é sabido que as cooperativas são capazes de satisfazer e assegurar esses interesses com maestria, sobretudo em períodos de crise.

Em razão disso, a Organização das Nações Unidas – ONU – conta com as cooperativas para cumprir os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável – ODS – propostos pela Agenda 2030 e que abarcam, de forma integrada e indivisível, as 3 dimensões do desenvolvimento sustentável, quais sejam: a econômica, a social e a ambiental.

Os 17 objetivos são:

  1. A erradicação da pobreza;
  2. A fome zero e a agricultura sustentável;
  3. A saúde e o bem estar;
  4. A educação de qualidade;
  5. A igualdade de gênero;
  6. A água potável e o saneamento;
  7. A energia acessível e limpa;
  8. Trabalho decente e crescimento econômico;
  9. A indústria, inovação e infraestrutura;
  10. A redução das desigualdades;
  11. As cidades e comunidades sustentáveis;
  12. O consumo e a produção responsáveis;
  13. Ação contra a mudança global do clima;
  14. Vida na água;
  15. Vida terrestre;
  16. Paz, justiça e instituições eficazes; e
  17. Parcerias e meios de implementação.

Parte desses objetivos poderá ser cumprida por determinados ramos do cooperativismo, graças a sua expertise, outros, por todos eles, em virtude dos princípios que regem as cooperativas, uma vez que impedem a discriminação, promovem a gestão democrática do negócio, a educação e a formação cooperativa, tanto endógena como exógena, mediante o trabalho conjunto dos cooperados e das cooperativas, seja em âmbito local, nacional, regional ou internacional, o que resulta, como consequência, no desenvolvimento sustentável da comunidade.

Sem sobra de dúvidas, uma das formas mais eficazes para alcançar o desenvolvimento sustentável é a promoção da igualdade de gênero, empoderando as mulheres e estimulando seu ingresso no mercado de trabalho, uma vez que somos metade da população mundial e, no Brasil, 51,8% da população.

Como as cooperativas observam o princípio das portas abertas, impedindo a discriminação, se tornam as melhores opções para o empoderamento feminino como um todo, já que a desigualdade de gênero na educação, no mercado de trabalho, na saúde e na proteção legal reduz o crescimento econômico e desperdiça os recursos humanos, custando $9trilhões por ano, algo em torno de 12% do Produto Nacional Bruto mundial.

De acordo com a ONU, o empoderamento feminino resulta em maior produção econômica, reduz a mortalidade infantil e materna, gera um crescimento moderado da população, traz uma melhora nutricional e de saúde, aumenta as chances de educação das gerações futuras, previne conflitos, aumenta as chances de reconciliação após conflitos, melhora as políticas sociais e os padrões legais das vidas das mulheres e das outras pessoas de sua comunidade.

E como as cooperativas melhorariam, efetivamente, esses fatores?

Segundo Stefania Marcone, por ser um modelo de negócio baseado na democracia e no mutualismo, as cooperativas atraem as mulheres na medida em que proporcionam oportunidades para participarem e influenciarem as atividades econômicas, proporcionando autonomia e autoconsciência, e oportunidades das quais poderiam ser excluídas, garantindo o sucesso empresarial em seu benefício.

Além disso, o cooperativismo pode se tornar um espaço privilegiado de resgate de valores de igualdade de gênero ao trazer os valores de afeto, cuidado, cooperação e responsabilidade às políticas, estratégias e programas da instituição, potencializando um trabalho baseado na inovação organizacional e capacidade de direcionar a demanda por setores de trabalho de alta intensidade, permitindo um sistema organizacional com flexibilidade de horários, além de oferecer a todos a possibilidade de adquirir, manter e aumentar sua qualificação profissional, devido a este tipo de sociedade estar comprometida com a educação.

Como resultado, as mulheres se sentem acolhidas e veem a possibilidade de ter uma carreira, recebendo de forma justa pelo trabalho realizado por intermédio da cooperativa, pois têm voz igual na governança democrática e oportunidades de possuir o negócio em que trabalham.

De acordo com pesquisas realizadas, muitas mulheres se sentem desestimuladas a permanecer no mercado de trabalho em razão da maternidade, seja por causa das condições afetas à licença maternidade, seja pela exigência laboral que não as permitem a ascender profissionalmente e conciliar a vida familiar.

Como nas cooperativas elas são donas do negócio, existiria uma facilidade em coordenar os horários de trabalho, permitindo que atuassem profissionalmente de forma satisfatória e passassem tempo com seus filhos.

Outra forma de estimular a permanência feminina no trabalho seria a aplicação de políticas de cuidados infantis e para saídas dos pais, permitindo que as mulheres tenham ânimo para seguir carreiras longas e galgar cargos mais elevados e com melhores salários.

Sabe-se, também, que a violência doméstica restringe a participação feminina no mercado de trabalho e tem efeitos devastadores em seu poder econômico, comprometendo sua saúde (dificuldades de andar, realizar atividades diárias, sofrem dores, perda de memória e estresse emocional), dificultando o acesso ao labor externo.

Isso diminui a produtividade econômica e aumenta a despesa com serviços públicos, já que a violência doméstica custa 25 vezes mais que o terrorismo, algo em torno de 5,2% do PIB mundial, além do gasto anual estimado em $5bilhões por parte dos empregadores.

Tendo em vista que as cooperativas proporcionam a autonomia e a autoconsciência, ademais do retorno financeiro justo pelo trabalho realizado, as mulheres aumentam sua renda e se tornam independentes de seus companheiros, o que reduz a violência contra a elas e a exclusão econômica, ao acederem ao crédito e terem acesso à conta bancária própria. Assim, elas deixam de sujeitar-se a situações degradantes e desrespeitosas.

No entanto, mesmo nas cooperativas, ainda é difícil para que as mulheres alcancem posições de liderança. E porque isso ocorre?

Por causa da guetização no trabalho, que pode ser verificada de duas formas:

  1. Por setor (segregação ocupacional), por exemplo, as mulheres podem ser professoras, mas não são admitidas como banqueiras;
  2. Limitação hierárquica: acesso aos cargos de gestão.

Essa guetização gera uma perda da autonomia pessoal e reduz o crescimento econômico, além disso a limitação ao trabalho e à educação acarretam em uma percepção de inferioridade intelectual, sendo assim, as mulheres se percebem com menos poder e influência do que os homens, fazendo com que mentores e pupilos tendam a agrupar-se em torno do próprio gênero.

É necessário destacar que o medo inconsciente do poder feminino, por questões culturais e religiosas ancestrais, podem ser uma das razões dessa segregação e exclusão feminina, além de, de acordo com Keith Payne, a manutenção do status ser uma necessidade de todos os primatas, que se revela, no ser humano, como a necessidade de manutenção do poder adquirido, ainda que isso determine a sustentação das desigualdades.

Atrelado a isso, observa-se, também, a imposição da indústria da beleza, criada pelos homens, a partir da década de 60 (momento de revolução da liberdade feminina, conhecido como a segunda onda do feminismo) para impor um cabresto às mulheres. Como ela se aplica às carreiras femininas?

Em relação ao estilo, se uma mulher está muito bem vestida, será vista como autoritária, mandona, inflexível e não chegará aos cargos de liderança por essas não serem as características esperadas das mulheres, embora no âmbito masculino sejam elogiadas. Por outro lado, se uma mulher não se veste bem, também não chegará a esses cargos por não demonstrar confiabilidade.

Já em relação à busca pela juventude eterna e procedimentos estéticos faz com que as mulheres tirem o foco de suas carreiras. E isso, no Brasil é preocupante, somos o 2º país com o maior número de procedimetnos estéticos anual, dados de 2018, perdendo apenas para os EUA. A partir do momento que as mulheres tem essa preocupação e dispensam tempo para se manter jovens, com o corpo dentro dos padrões estéticos impostos, a pele e cabelos perfeitos, reduz-se o tempo de dedicação no trabalho e em estudos e treinamentos para atingir melhores cargos e salários, além de diminuir o tempo com a família. Com isso, muitas mulheres podem desistir de se manter no mercado de trabalho, ou entrar em depressão por não conseguir conciliar tudo que delas é exigido, ou então, desistir de buscar melhores cargos.

E, por fim, se uma mulher é considerada velha demais dentro dos padrões estéticos de uma sociedade, ela dificilmente chegará aos cargos de liderança, assim como se são consideradas jovens e bonitas, o acesso a esses cargos sempre estará conectado ao questionamento de sua competência.

No entanto, quanto maior a diversidade, maiores são as chances de reconhecer talentos e, conforme constatado em estudos, quando há mais mulheres em cargos de gestão, as sociedades aumentam sua prosperidade e melhoram sua performance, aumentando o retorno dos investidores, retem mais talentos e diminuem a rotatividade de pessoal, graças à maior satisfação dos trabalhadores, além de se basearem em fundamentos éticos sólidos que trazem maior confiança à empresa.

Para atingir esses cargos de liderança, é necessário o constante aperfeiçoamento e o acesso à educação de qualidade, e a preocupação com a educação é inerente ao cooperativismo e um mecanismo poderoso para o avanço das mulheres e das condições sociais, porque?

Se as mães tem melhores níveis educacionais, as filhas também terão, as crianças serão mais saudáveis (a preferência pelo filho faz com que meninas sejam deixadas para morrer de fome em alguns países), reduz a mortalidade, os índices de feritilidade – controle demografico – melhor aplicação das políticas sociais, redução da pobreza endêmica, da corrupção endêmica, da insegurança política, da violencia doméstica e social, do perigo ambiental, o alastramento de epidemias, inacesso à saúde de qualidade e a deterioação do tecido social.

Com isso, verifica-se que todos os 17 objetivos de desenvolvimento sustentável da agenda 2030 poderão ser facilmente atingidos se apenas um deles (o da inclusão de gênero) for amplamente difundido, sendo as cooperativas o melhor meio para tanto, já que são sociedades preocupadas com as pessoas e com o desenvolvimento sustentável de suas comunidades.

Referências:

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______. Para educar crianças feministas. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

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LOPEZ-CLAROS, Augusto; NAKHJAVANI, Bahiyyih. Equality for women = prosperity for all: the disastrous global crisis of gender inequality. New York: St. Martin’s Press, 2018.

MARCONE, Stefania. Igualdade de gêneros: uma estratégia para o desenvolvimento cooperativo. In: Cooperativismo de Gênero. Brasília: MAPA/ACS, 2009.

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sobre o autor

Marianna Ferraz Teixeira

Mestre em em Gestão e Regime Jurídico-Empresarial da Economia Social pelo Instituto Superior de Contabilidade e Administração do Porto/Instituto Politécnico do Porto (ISCAP/IPP). MBA em Gestão de Cooperativas de Crédito pela Universidade de São Paulo (USP). Especialista em Direito e Prática Processual nos Tribunais pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB), mesma instituição de ensino em que se graduou em Direito.

Realizou cursos em Governance in Co-operatives pelo Canadian Centre for the Study of Co-operatives, em International Business Transactions pela Universidad Austral e em Tributação no Mercado Financeiro pela CNF e B3 Educação.

É membro do Instituto Brasileiro de Estudos em Cooperativismo (IBECOOP), da Comunidade Internacional de Advogados Cooperativistas (IUS Cooperativum) e do Grupo de Estudos em Direito e Regulação Financeira da Universidade de Brasília (GEFIN/UnB).

Idiomas: português, espanhol, inglês e francês.

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