As cooperativas de crédito e o regime de cogestão: assistência temporária ou intervenção política?

Amílcar Barca Teixeira Júnior

elemento decorativo haste dourado

No dia 17 de abril de 2009, entrou em vigor a Lei Complementar nº 130, que dispõe sobre o Sistema Nacional de Crédito Cooperativo – SNCC. Referido diploma legal revogou dispositivos da Lei nº 4.595, de 31 de dezembro de 1964, bem como da Lei nº 5.764, de 16 de dezembro de 1971.

Dentre as várias novidades trazidas pela LC nº 130, o regime de cogestão pareceu ser um instituto que daria maior estabilidade sistêmica, nomeadamente nos casos em que a cooperativa singular estivesse passando por risco de solidez, decorrente de crises administrativas, em razão de má gestão operacional, ocorrida, em regra, por despreparo dos gestores eleitos em assembleia geral.

O novo instituto está previsto no artigo 16 da lei, conforme se pode verificar abaixo:

Art. 16. As cooperativas de crédito podem ser assistidas, em caráter temporário, mediante administração em regime de cogestão, pela respectiva cooperativa central ou confederação de centrais para sanar irregularidades ou em caso de risco para a solidez da própria sociedade, devendo ser observadas as seguintes condições:

I – existência de cláusula específica no estatuto da cooperativa assistida, contendo previsão da possibilidade de implantação desse regime e da celebração do convênio de que trata o inciso II do caput deste artigo;

II – celebração de convênio entre a cooperativa a ser assistida e a eventual cogestora, a ser referendado pela assembleia geral, estabelecendo, pelo menos, a caracterização das situações consideradas de risco que justifiquem a implantação do regime de cogestão, o rito dessa implantação por iniciativa da entidade cogestora e o regimento a ser observado durante a cogestão; e

III – realização, no prazo de até 1 (um) ano da implantação da cogestão, de assembleia geral extraordinária para deliberar sobre a manutenção desse regime e da adoção de outras medidas julgadas necessárias.

Como se observa da parte final do caput do artigo acima descrito, a implementação do regime de cogestão pressupõe a observância de determinadas condições, ou seja, o regime não pode ser aplicado aleatoriamente, de acordo com a conveniência política da respectiva central ou confederação de centrais.

As condições mínimas para viabilização do regime de cogestão são as seguintes:

I – existência de cláusula específica nos estatutos da cooperativa assistida, contendo a previsibilidade de implementação do regime;

II – celebração de convênio entre a cooperativa assistida e a eventual cogestora;

III – aprovação do convênio em assembleia geral da cooperativa assistida;

IV – no convênio, devem ser estabelecidas, pelo menos, a caracterização das situações consideradas de risco que justifiquem a implantação do regime de cogestão, o rito de sua implantação por iniciativa da entidade cogestora e o regimento a ser observado durante a cogestão; e

V – realização, no prazo de até 1 (um) ano da implantação da cogestão, de assembleia geral extraordinária para deliberar sobre a manutenção do regime e da adoção de outras medidas julgadas necessárias.

Verifica-se, pois, que as condições para a implementação do regime cogestão passa, necessariamente, pela regular aprovação do convênio, em Assembleia Geral Extraordinária – AGE, da cooperativa assistida. Além dessa AGE, havendo a necessidade da manutenção desse regime, as partes envolvidas deverão, no prazo de até 1 (um) ano, deliberar o assunto em outra AGE, em que será discutida a manutenção da cogestão ou a adoção de outras medidas necessárias.

A inserção do regime de cogestão no âmbito das cooperativas de crédito brasileiras, numa primeira leitura, deu a impressão de que o novo instituto seria um avanço e uma importante ferramenta para esse ramo cooperativista. Contudo, a falta de regulamentação pelo Conselho Monetário Nacional – CMN, até o presente momento, permitiu que o assunto fosse disciplinado pelo próprio segmento. Nessa direção, diversas são as regulamentações, cada uma realizada de acordo com as conveniências de um ou outro sistema de cooperativas de crédito.

Com efeito, a possibilidade de assistência temporária no que diz respeito à gestão das cooperativas de crédito, pelo regime de cogestão, em alguns casos, passou a servir aos interesses políticos de dirigentes de cooperativas de grau superior, para afastar administradores regularmente eleitos em assembleia geral[1] do comando das cooperativas singulares.

Há que se destacar que o legislador complementar, na concepção da LC nº 130, de 2009, estabeleceu a necessidade de AGE para iniciar o regime de cogestão, bem como para prorrogá-lo, sendo o caso. Em nenhum trecho da referida norma, restou definido que tal regime resultaria no afastamento imediato dos administradores da cooperativa assistida, situação que já foi observada em algumas situações concretas.

Nada obstante as regulamentações privadas já implementadas, cada qual observando as conveniências de seus respectivos sistemas, os operadores cooperativistas não podem esquecer de que o poder de polícia, no âmbito do Sistema Financeiro Nacional – SFN, constitui reserva exclusiva do Banco Central do Brasil – BCB.

Assim sendo, mesmo sem haver ainda a regulamentação oficial, emanada do poder competente, alguns pontos do artigo 16 da LC nº 130, de 2009, são autoaplicáveis, como por exemplo, a necessidade de o convênio de cogestão ser referendado pela Assembleia Geral da cooperativa assistida.

Portanto, não havendo o referendo da Assembleia Geral, órgão supremo das sociedades cooperativas, o regime de cogestão não pode ser iniciado, sob pena de ser validada uma intervenção política na cooperativa singular, situação totalmente ilegal, tanto na ótica do artigo 16 da LC nº 130, de 2009, como também na ótica do artigo 38 da Lei nº 5.764, de 1971.

É também da competência das Assembleias Gerais, ordinárias ou extraordinárias, a destituição dos membros dos órgãos de administração ou fiscalização, conforme dispõe o artigo 39 da Lei nº 5.764, de 1971.

No que se refere às regulamentações privadas atualmente existentes, a Resolução nº 182 do Sicoob Central BA[2]aprovou o Regulamento de Assistência Temporária. O artigo 2º do Regulamento do Sicoob Central BA previu três estágios para a assistência temporária relativamente às suas filiadas, in verbis:

Art. 2º. Os estágios de assistência temporária às cooperativas filiadas serão definidos da forma a seguir:

I – Gestão Acompanhada: identificação de classificação de médio a muito alto risco no Rating Sicoob na cooperativa filiada ou por determinação expressa do Conselho de Administração do Sicoob Central BA referente à identificação de situação de risco relevante;

II – Gestão Compartilhada: continuidade ou agravamento das situações identificadas no estágio de Gestão Acompanhada decorrente do resultado insuficiente das ações realizadas, definidas em plano de ação específico, após o encerramento do prazo concedido para regularização;

III – Cogestão: continuidade ou agravamento das situações identificadas no estágio de Gestão Compartilhada, decorrente do resultado insuficiente das ações realizadas, definidas em plano de ação específico, após o encerramento do prazo concedido para regularização.

Nos termos do artigo 3º da regulamentação acima referenciada, a Gestão Acompanhada deverá ser aprovada pelo Conselho de Administração do Sicoob Central BA e comunicada formalmente à cooperativa filiada, que deverá dar conhecimento aos seus respectivos Conselhos de Administração e Fiscal, com o devido registro em ata de reunião desses órgãos.

Além disso, deve apresentar plano de ação para regularização das situações de risco identificadas. Os artigos 4º até o 7º da Resolução nº 182 detalham os procedimentos a serem adotados no caso de implementação da Gestão Acompanhada.

A Gestão Compartilhada, segundo o artigo 8º da regulamentação, deverá ser aprovada pelo Conselho de Administração do Sicoob Central BA, após análise de relatório de avaliação do plano de ação da Gestão Acompanhada, e comunicada formalmente à cooperativa filiada.

Do mesmo modo que ocorre com a Gestão Acompanhada, a Gestão Compartilhada deverá dar conhecimento aos seus respectivos Conselhos de Administração e Fiscal, com o devido registro em ata de reunião desses órgãos, bem como deverá apresentar plano de ação para regularização das situações de risco identificados. Os artigos 9º até o 14 do regulamento interno citado acima detalham os procedimentos que deverão ser adotados para a Gestão Compartilhada.

Somente depois de ultrapassados os estágios da Gestão Acompanhada e da Gestão Compartilhada é que será adotado o regime de cogestão. O último estágio está previsto no artigo 15 e seguintes do Regulamento de Assistência Temporária do Sicoob Central BA, abaixo:

Art. 15. A cogestão deverá ser aprovada, previamente, pelo Conselho de Administração do Sicoob Central BA, após análise do relatório de conclusão do plano de ação da Gestão Compartilhada, e comunicada formalmente à cooperativa filiada que deverá realizar assembleia geral extraordinária específica em até 60 (sessenta) dias para aprovar o regime de Cogestão, bem como os termos do convênio a ser celebrado com esta finalidade previsto no art. 19[3]. [negritou-se]

Nota-se, portanto, o cuidado tomado pelo Sicoob Central BA na elaboração do seu Regulamento de Assistência Temporária, aplicável às cooperativas filiadas. Ora, se a Constituição da República não aprova a interferência estatal no funcionamento das sociedades cooperativas (inciso XVIII do art. 5º[4]), de igual modo, não poderão as cooperativas de grau superior (central ou confederação) interferir no funcionamento das cooperativas de primeiro grau, suas criadoras, sem que a assembleia geral das cooperativas singulares aprovem, sob pena de infringir o princípio cooperativista da gestão democrática.

A Resolução 182 do Sicoob Central BA, além de ser um documento de excepcional qualidade técnica, modelo, inclusive, para as demais centrais e singulares ligadas ao cooperativismo de crédito é, também, um documento que respeita os valores e princípios mundialmente consagrados pela Aliança Cooperativa Internacional – ACI.

Nessa direção, o que se espera de todos operadores cooperativistas, é o respeito às normas (compliance), notadamente no que concerne aos estágios que antecedem a implementação do regime de cogestão.

Qualquer atitude que desrespeite o rito estabelecido no artigo 16 da LC nº 130, de 2009, bem como o artigo 38 da lei de regência do cooperativismo, sem qualquer dúvida, caracterizará, também, afronta ao inciso IX do artigo 4º da Lei nº 5.764, de 1971, que preconiza a neutralidade política e indiscriminação religiosa, racial e social.

Há que ressaltar, ademais, que as cooperativas de segundo e terceiro graus são instituições orçamentárias, ou seja, para sua criação/manutenção, elas dependem de verbas das singulares que, ao fim e ao cabo, são as entidades geradoras das riquezas coletivas.

Destarte, sendo as singulares as verdadeiras criadoras das centrais, as criaturas não podem desconsiderar tal premissa e se voltarem contra suas criadoras, atuando como se fossem superiores, intervindo, de forma ilegal, ao utilizar o regime de cogestão como disfarce para validar verdadeiras intervenções políticas nas cooperativas singulares.


[1] Art. 38 da Lei nº 5.764, de 1971. A Assembleia Geral dos associados é o órgão supremo da sociedade, dentro dos limites legais e estatutários, tendo poderes para decidir os negócios relativos ao objeto da sociedade e tomar as resoluções convenientes ao desenvolvimento e defesa desta, e suas deliberações vinculam a todos, ainda que ausentes ou discordantes.

[2] Aprovada pelo Conselho de Administração da Sicoob Central BA, em 28/11/2019.

[3] Art. 19. Deverá ser celebrado convênio entre a cooperativa filiada e o Sicoob Central BA a ser referendado pela assembleia geral extraordinária da cooperativa filiada, estabelecendo, pelo menos, a caracterização das situações consideradas de risco que justifiquem a implantação do regime de Cogestão, o rito dessa implantação por iniciativa do Sicoob Central BA e o regimento a ser observado durante a Cogestão.

[4] Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(…)

XVIII – a criação de associações e, na forma da lei, a de cooperativas independem de autorização, sendo vedada a interferência estatal em seu funcionamento;

sobre o autor

Amílcar Barca Teixeira Júnior

Pós-graduado em Gestão de Cooperativas pela Universidade de Brasília (UnB). Cursou pós-graduação em Direito Tributário no Centro Universitário do Distrito Federal (ICAT/UDF). Graduado em Direito pela Faculdade de Direito do Sul de Minas.

Foi conselheiro do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais do Ministério da Fazenda (CARF) e do Conselho de Recursos da Previdência Social (CRPS).

Foi Consultor Jurídico e Superintendente da Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB) e do Serviço Nacional de Aprendizagem do Cooperativismo (Sescoop Nacional).

Foi Superintendente da Organização das Cooperativas do Distrito Federal (OCDF) e do Serviço Nacional de Aprendizagem do Cooperativismo no Distrito Federal (Sescoop/DF).

Autor do livro Cooperativas Financeiras Aspectos Jurídicos e Operacionais Coletânea de Pareceres e Artigos.

Coautor dos livros: Participação de Cooperativas em Procedimentos Licitatórios; Cooperativas de Trabalho na Administração Pública; Cooperativas de Trabalho e o Termo de Conciliação Judicial AGU / MPT; Comentário ao Regulamento de Licitações e Contratos do Sistema “S”; Contribuições Previdenciárias à Luz da Jurisprudência do CARF; Tributação das Cooperativas à Luz da Jurisprudência do CARF; Direito Tributário e Educação; Direito Cooperativo e Identidade Cooperativa.

Coordenador das Coletâneas Cooperativismo e IBECOOP da Editora Vincere.

É membro e professor do Instituto Brasileiro de Estudos em Cooperativismo (IBECOOP).

Idiomas: português e espanhol.

Publicações semelhantes

A participação feminina nas cooperativas brasileiras

elemento decorativo haste dourado

O cooperativismo e o ODS n. 5 da Agenda 2030 da ONU

elemento decorativo haste dourado

Os artigos 2º da LC n. 130/2009 conforme o PLP n. 27/2020

elemento decorativo haste dourado

Confederação de crédito X Confederação de serviço

elemento decorativo haste dourado

Por que reformar a Lei Complementar n. 130/2009?

elemento decorativo haste dourado

Cooperativas de crédito

elemento decorativo haste dourado

Inscreva-se no nosso boletim

Você receberá mensalmente notícias, artigos e os novos contéudos publicados.